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Senhor Cão

por Flávio Ilha
Arte da capa de "Senhor Cão", romance de Flávio Ilha. Ilustração de Jenna Barton mostra um cão preto sob um céu azul.

Flávio Ilha é editor e escritor, autor de Longe daqui, aqui mesmo (2018), Ralé (2019) e João aos pedaços – biografia de João Gilberto Noll (2021). Vive em Porto Alegre. Senhor Cão (Aboio, 2024) é seu primeiro romance.


1

É uma curva. Ele vê uma longa curva de onde se divisa quase a circunferência toda da Terra. Como se estivesse flutuando no espaço. Mas não a vê, não de verdade, não está flutuando no espaço. É apenas uma sensação de vertigem, justo quando entra na casa da sua memória. Procura o interruptor, tateia a mão na parede, só encontra a penumbra da sala de estar. O bafo da memória lhe traga a razão. E sente vontade de ir embora logo que ouve a buzina do carro, do outro lado da rua. “Maria Izabel chegou.” Não se move. Alguma coisa o detém no limiar daquele universo, vê sombras, escuta um sopro que vem da cozinha, vozes lhe tangem os ouvidos. A garganta arde. A fumaça das lembranças, ouve o pai lhe dizendo, o crivo entre os dedos. O rio suculento da infância. Tudo agora se encaixa no elemento primordial de sua existência, a mônada, o grão, o mundo distinto, indestrutível, que ele quer carregar para longe dali, enquanto a partícula da mãe se consome, vassala, ao rilhar de um cachorro caduco.

Aqui, Rex! Vem!

Não se chama Rex. Pedro é seu nome. Pedro Flávio Póvoa. Acomodada na cadeira de balanço, dona Leda não distingue mais as horas, esquece nomes, enxerga apenas uma massa disforme à sua frente, sem cor. Repreende o cão da família, morto há anos; depois, afaga o animal sem entender por que está tão escuro. A cabeça tem os mesmos pelos ralos do filho, que ela agora segura entre os dedos. Esmaga uma migalha de pão e a arremessa pela janela que dá para o jardim, onde outro cão, este vivo, a recolhe com a língua rosada para se alimentar.

Pedro escuta a buzina mais uma vez. Ergue os joelhos, ajeita o cabelo em desalinho. O som atiça sua costumeira indiferença por Maria Izabel. Ela queria filhos. Não os terá. Não desta vez, nem com ele. Fracassou nas escolhas. E Pedro não se sente minimamente culpado se é obsequiosa, condescendente com os esculachos do seu homem, impassível, dominador. “Assim vai perder o voo!”, ela grita, lá distante. Mulheres feito Iza, que buzina uma terceira vez, já aflita, são feitas de desassossego. Como a mãe, sem mais direção, batendo cabeça pelos cantos, chamando por Alba, por Tereza, há muito desencarnadas; dona Leda busca novamente pelo cão morto, pelas plantas que já secaram nos vasos, pela tesoura que nem existe mais, queria voltar a tecer as roupas dos filhos, os vestidos de Eulália, camisas para Pedro e para Quim, mas desconhece o paradeiro da máquina de costura. Então Pedro conclui que ela não tem mais serventia, seu prazo expirou, assim como o prazo de Maria Izabel, louca por uma companhia para atravessar a velhice.

A mãe amassa mais um pedaço do pão dormido e dessa vez o engole, faz uma careta, olha para o desconhecido à sua frente, desconfia do seu silêncio e volta a se concentrar na novela de época da TV, enquanto busca um afago na cabeça do cão ausente. Tudo se move, o mundo gira sem parar, é uma sobreposição metódica de lembranças, fracionada, Amália, as fotografias, Ceiça, a grana, Carlito, o escândalo. Mesmo Pedro, inerte no umbral que o contrapõe a seus dois mundos, está em movimento. Quando der as costas, o passado não será mais que o hálito fermentado de todas as manhãs.

Pega a mochila, leva-a ao ombro. Faz a sua escolha.

[  ]

Só na rua cogita se redimir. Como pôde trair a própria mãe? Tem vontade de vomitar, ali mesmo, no carro que o leva ao aeroporto. Mas logo se deixa levar pelo decoro, essa é a verdade, enquanto Iza guia em silêncio, sem perceber o desenrolar da trama que os colocará em campos opostos. Ela sabe que se trata de uma fuga — e nunca uma fuga, por mais justificada que seja, pode ser bem-vista. Sabe também que não se trata de uma fuga qualquer, mas sim de uma desesperada viagem em busca de proteção. Ou de um desaparecimento, agora que a imagem de dona Leda, inerte em frente à TV, o corpo seco em curva, se projeta fugaz na mente de Pedro.

Ainda dá tempo de voltar, amor.

Ele ri. Amor — há quanto tempo não pronuncia essa palavra?

[  ]

O viaduto logo à frente, orquestrado por algum mau administrador, cinde sua cidade em duas: a massa pertinaz de prédios, à frente; a bucólica Porto Alegre das casas baixas, com quintais e gatos nos telhados, ficando para trás, junto da mãe, feito ele, um pé no mundo-mundo-vasto-mundo, outro na infância-querida-que-os-anos-não-trazem-mais. Até que diz para si mesmo, derradeiro ponto de inflexão: finalmente estou fugindo dela estou fugindo dela estou fugindo graças a deus estou fugindo dela.

O silêncio no trajeto é apenas um mecanismo de defesa. Uma maneira de simular uma culpa que não carrega. Afinal, não aprendeu a ter remorso nem a pensar em arrependimento. Foi ele quem enterrou Rex no jardim de casa, a mãe e os irmãos não quiseram ver o cão em agonia, os músculos paralisando aos poucos, os espasmos. O sinal da cruz, a missão. O certo é que se considera, desde então, um predestinado. Não há de se penitenciar por dona Leda, por Ceiça, os irmãos, Iza. Pedro, o escolhido. Aquele que tudo pode. Pedro, o homem. 

E se foi sempre assim, tão assertivo quanto a isso, bem, como diz Coetzee, o crânio, depois o temperamento: as duas partes mais duras do corpo.

Vou poupar os leitores da despedida em si, são cenas enfadonhas, cheias de frases lamuriosas. Essa não foi diferente. Mas, como já disse, vou poupar os leitores. Agora basta saber que o filho problemático, a razão das preocupações de dona Leda, o mote de suas orações e das noites mal dormidas, foi embora. Pedro supõe, já a bordo do Airbus que o deixará em Lisboa dentro de dez horas, que a mãe pode ter tido a mesma premonição que ele, de que não o veria mais, de que a história dos dois, a tumultuada história de mãe e filho, se encerrava ali.

Se ela teve tal visão, Pedro Póvoa nunca saberá.


O voo é calmo, só que dormir nas poltronas da classe econômica é doloroso. Ele passa quase toda a noite acordado. No começo da viagem, abre o notebook, mas logo sente aumentar o desconforto dos assentos, quase colados uns aos outros, e procura uma posição melhor. Como ficou no meio do corredor central, não pode apoiar na janela a cabeça, que pende enquanto cochila. Dorme. Acorda com um solavanco da aeronave. Dorme de novo. Acorda. Dorme. Sonha.

Está num hospital. Não há mãe nem pai, só ele observando um cavalinho de corda que pula sobre o lençol branco. Está deitado, suspeita que foi operado. Não sente dor. Mas o fato de estar sozinho, ainda criança, num hospital, o deixa aflito. Olha para os lados, não vê ninguém. A porta do quarto se mantém fechada. Tenta se levantar da cama, mas percebe que está amarrado com as tiras de um lençol rasgado. O cavalinho segue pulando frenético sobre ele, a corda do brinquedo não termina nunca e o garoto do sonho sente uma agonia lhe tomar conta do corpo. A rotação do cavalinho aumenta mais e mais a ponto de lhe furar a barriga. Acorda quando percebe uma mancha de sangue escorrer de seu abdome.

O vizinho do lado se agita. O homem nota que ele acordou sobressaltado, pergunta se está tudo bem e Pedro responde, em inglês, que sim. Por que responde em inglês se sabe que o vizinho de voo é brasileiro? Sente um pouco de vergonha pela arrogância, mas precisa se acostumar com a ideia de que não tem mais pátria. Quer dizer, sempre terá pátria. Sempre será brasileiro, embora a ideia lhe pareça um tanto quanto antiquada. Típica do seu pai, que por ironia do destino virou um expatriado. Mas quer se acostumar com a noção de que não necessita mais de uma identidade nacional. Ou que está acima dela, de seus compatriotas mal-vistos pelo mundo. Ou, ele elabora melhor o raciocínio, que terá várias pátrias para escolher quando desembarcar em território europeu. Fica feliz com a possibilidade.

Sabe que tentou de tudo para manter-se inabalável. Mesmo depois que as pessoas perderam o bom senso, que condenar sem julgamento passou a ser a regra; mesmo assim, mesmo na mira, preferiu protelar uma decisão tão drástica. Afinal, o que os outros tinham a ver com as escolhas pessoais dele? De Maria Izabel? Da doce Ceiça? De qualquer modo, não conseguia enxergar proporção entre fato e sentença. Por precaução, preferiu se afastar, o mais rápido que pôde. Não conviver mais com o risco, com a censura, as negativas, Há meses se sente amarrado, como no sonho que o despertou de súbito, sem possibilidade de reagir ao cerco a que foi submetido. Ao que teria de enfrentar se ficasse: a derrocada.

Mas o que sabe do futuro? Nada, pensa. Sente medo, como todo mundo sente ao seu redor. Medo do avião, que os leva a trinta mil pés de altura, despencar. Medo de perder tudo, de acabar na merda. Da dor nas costas, que só piora. De tudo um pouco. Lembra do “Pequeno mapa do tempo” e do personagem do Belchior. Não dá pra viver sem algum tipo de medo, é isso que a canção quer dizer? É isso. Mas na época se vivia uma guerra, algumas pessoas podiam ser embarcadas num avião e, com as mãos amarradas, jogadas no mar. Nunca poderia compactuar com isso, de forma alguma. Se julga um humanista. Só que, com o tempo, passou a questionar os atos que levaram a tal solução. Relativizou, como dizem, enxergou as coisas sob outro prisma. Com menos ingenuidade? Não. Simplesmente lhe parece que era necessário se opor, na força que fosse, às tentativas de abolir a liberdade. A sua liberdade, da qual não abre mão.

É essa liberdade que defende: o seu direito, o de Ceiça. A liberdade de escolha de ambos. Afinal, não acredita que a tenha enganado. Não soube mais dela depois do episódio, embora Pedro tenha se inteirado da repercussão, e tenha se dado por satisfeito com a baixeza tão bem arquitetada: ela se deixou levar pela sedução, pela vaidade típica da juventude. Talvez por um pouco de rebeldia também. Foi uma decisão consciente, por isso a paz de espírito. Mas ele também sabe que o medo de agora tem cor e cheiro: fede aos zumbis que ainda clamam seu cancelamento, que trabalham para transformar sua vida num inferno. Está livre disso. E pode ir para onde quiser, fazer o que bem entender: é um homem branco. Tem passaporte. Dois passaportes, na verdade, um brasileiro, outro português, o caderninho bordô que lhe garantirá a blindagem necessária. Embora, é verdade, preferisse o documento azul do Reino Unido, o inglês ao lusitano. Leva um bom dinheiro, suficiente para impor respeito. Não pode ser molestado. Mesmo assim, não há garantias. Sente que faz o que deve fazer. Talvez o que devesse ter feito há muitos anos, quando ainda podia celebrar escolhas e não era importunado por qualquer um que se sentisse no direito de censurá-lo. De qualquer modo, nunca mais ouviu Belchior. E agora detesta tudo que remete à memória daquele tempo, a reverência ao pai, o heroísmo da mãe. Por isso viaja cheio de esperança. 

O avião atravessa o Atlântico com uma suavidade surpreendente. O homem que está do seu lado esquerdo se ajeita na poltrona, estica a perna e a estende no corredor. A camisa apertada faz saltar pequenas bolas de gordura entre os botões. Sente nojo. Mas tem inveja da mobilidade que a poltrona do vizinho proporciona. Do lado direito, uma adolescente dorme com grandes fones sobre as orelhas. Ao lado dela, uma mulher e, logo no outro corredor, um homem. Os dois dormem com máscaras nos olhos e ele presume que sejam os pais da menina, apesar de muito jovens. Pensa que podia ter uma filha, ou um filho, da mesma idade da menina. Talvez um pouco mais velhos. Logo descarta a ideia; seriam, eles sim, um empecilho ao seu recomeço. Melhor não. Pensa em Ceiça. Olha para o lado e sente vontade de saber que música a garota ouve, mas a cabine está silenciosa. E ele teme que Maribel, é esse o nome que dá à menina, se assuste com sua curiosidade.

O balanço da aeronave lhe dá sono, mas Pedro teme ser traído por seus sonhos antes de pousar no Humberto Delgado. Então, se esforça para permanecer desperto. Lembra que não hesitou quando o alto-falante chamou seu voo, imaginando que a mãe, mesmo em casa, pudesse gostar disso, o nome do filho sendo anunciado no alto-falante, senhor Pedro Flávio Póvoa, ele que havia fracassado em quase tudo na vida, voo cento e dezessete, menos em ser ele mesmo, com destino a Lisboa, menos em achar justificativas para seus erros, informamos que esta é a última chamada, a mãe talvez pudesse se orgulhar dele. Pediu que Iza o deixasse na área de embarque, estava atrasado; antes de saltar do carro, lembra que ela lhe disse sentir um aperto no peito, como se carregasse por dentro um cão louco de raiva. Achou curiosa a frase, que agora fica martelando na sua cabeça, um animal louco de raiva no peito, como se fosse ele o cachorro cheio de ódio encarcerado dentro de Iza, louco para fugir.

Acorda com a cabeça latejando, as pernas dormentes. Olha para o lado e vê Maribel na mesma posição, como se tivessem se passado apenas dez minutos. Mas já está amanhecendo, percebe por uma janela semiaberta que o céu clareia no horizonte e presume que logo pousarão em Lisboa. Não sabe as horas, fica com preguiça de calcular o fuso. Maribel é jovem, não sente as dores da idade e talvez viaje para apagar alguma coisa, como ele. Também pode ser apenas um passeio em família, algum prêmio pelo seu desempenho escolar ou uma promoção do pai. Talvez ainda um recomeço, depois da gravidez indesejada que Gustavo lhe impôs ao mentir sobre a camisinha. Como Maribel pôde ser tão ingênua a ponto de acreditar que ele tivesse mesmo colocado o preservativo antes de penetrá-la? Quando percebeu já era tarde demais, o colega de escola, com quem perdeu a virgindade meses atrás, ejaculou nela tão rápido que a garota nem teve tempo de aproveitar. Sim, tomou a pílula do dia seguinte. Sim, contou aos pais. Sim, fez um aborto depois que a profilaxia não deu certo. Agora tudo é natural no seu país de merda. Nada mais escandaliza. Ele supõe que Maribel deva ter tomado algum remédio para dormir, pois nem a claridade da cabine, agora com as luzes acesas, nem o movimento da tripulação para servir o café da manhã são capazes de fazê-la mudar de posição. Os pais, não. Já estão acesos, fuçando nos telefones como se fossem eles os adolescentes.

Pedro se pergunta, antes de pousarem, se não foi duro demais com a mãe. Abraçou-a, não deixou de mencionar as recomendações de praxe sobre dar notícias etc. Mas não fez nenhuma menção de levá-la ao aeroporto, como se ele fosse uma visita entediada, ansiosa por partir. Deu as costas a ela sem remorsos. E tudo bem que destoasse um pouco dos irmãos. Que fosse mais cismado, como sempre o acusavam. Que fosse perdulário, com suas manias de roupas caras e uma vida muito além do que o dinheiro dele podia pagar. Até emocionalmente instável, trocando com frequência de mulher, ninguém atendia às suas expectativas, sempre encontrava um defeito, uma estria aqui, uma assimetria ali. Mas era da família, disso não restava dúvida — a não ser pela marca na testa, só dele. Pedro é, entre os três filhos, a mistura mais equilibrada dos traços paternos e maternos, sempre ouviu dizerem isso. O nariz de um, as mãos de outro; os dentes da mãe, a altura do pai; a ambiguidade do homem, a prontidão da mulher. Para o bem e para o mal, era produto de Leda e Carlito. E agora se via na iminência de negá-los. Como Pedro, de quem herdou o nome.

Mal o avião taxiou na pista e os passageiros se agitam, ávidos por sair daquela gaiola voadora e sentir o ar frio de Lisboa no rosto. O comandante anuncia que a temperatura é de oito graus às nove horas da manhã. Céu com farruscas, diz em seu sotaque lusitano. Nada mal para fevereiro. Maribel acorda, olha para os pais com cara de sono e mexe no celular, certamente para trocar a playlist. Deixa claro que será uma companhia difícil naquela estadia em Lisboa. E também nos outros destinos, Roma, Barcelona, Paris, quem sabe Berlim. Nada de museus, galerias de arte. Nada de caminhadas intermináveis. Nem de dias corridos, se alimentando de baguetes. Por ela passaria o tempo todo no metrô, viajando entre as estações, protegida da claridade e com os fones de ouvido lhe isolando do mundo.

Olham-se furtivamente enquanto Pedro especula sobre a trilha sonora de Maribel. Ele tenta pensar em alguma coisa para dizer a ela, que está a seu lado, quase encostando a perna na dele, mas os pais a chamam, pedem que a garota pegue a bagagem e que, sobretudo, cuide das malas, “presta atenção nas tuas coisas, depois não adianta reclamar”. Ela pede licença para se dirigir ao outro corredor, força um pouco a passagem, agora roça de verdade na sua perna e desacomoda o gorducho do lado. Pega uma valise cor de rosa, outra mochila, possivelmente com um tablet, e espera que o fluxo de passageiros destrave.

Ele a observa. Ela não o nota. Ele se levanta, sorri para a mulher do outro lado, que tem a cara fechada e diz alguma coisa ríspida para o pai de Maribel, sorri também para o gorducho que dormiu a viagem inteira, ele retribui meio constrangido, pois perdeu o café da manhã e agora sente fome, olha de novo para Maribel, encara a garota durante um largo tempo, decidido a sustentar o olhar no caso de ela perceber, nota seu perfil delicado, os seios bastante firmes sob o agasalho da GAP, embora seja pouco mais que uma menina, e lamenta que o filho que ela abortou não fosse dele. Se fosse, teria convencido-a de não tirá-lo, de ter a criança, de formarem uma família, esquecendo-se de que tem idade para ser o pai dela, um pai até tardio, é verdade, e sente ódio, ódio por não ter mais os dezoito anos que a fariam se encantar por ele, os cabelos fartos do jovem youtuber desbocado, o olhar provocante, a certeza de não ter uma causa pela qual lutar.

Ela mexe no celular, parece que confere as mensagens. Então, olha fixamente para ele e, com o dedo médio, faz aquele sinal característico para que Pedro vá se foder.


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Mais sobre a obra

“Faltam protagonistas repulsivos na literatura brasileira contemporânea”. A frase não tem autoria, talvez porque algumas provocações sejam repudiadas por quem escreve para o conforto. Se a maior parte da prosa de ficção hoje atribui aos personagens nauseantes papéis menores de destinatários de julgamentos – feitos pelos próprios autores que os imaginaram –, Flávio Ilha pode ser considerado um escritor dissonante. Em Senhor Cão, quem deve julgar é o leitor, e o alvo é o próprio personagem sem o qual não haveria narrativa.

O romance, visceral nos temas e, muitas vezes, na prosódia, se constrói em torno de um protagonista condenável, cuja existência se afirma pela régua da opressão. Mas se os homens monstruosos aterrorizam, é porque não cabem em estampas; são intrincados e, inevitavelmente, estão atravessados pela própria história. A “branquitude tóxica”, como aponta Paula Sperb na orelha do livro, tem camadas e, na vida e na ficção, não há reflexão autência que não revolva a complexidade e a verossimilhança dos donos da violência.

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